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A Retórica (digital) das redes sociais Antonio Carlos Xavier (Nehte/UFPE)1 Resumo: As linguagens são as principais tecno...

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A Retórica (digital) das redes sociais Antonio Carlos Xavier (Nehte/UFPE)1 Resumo: As linguagens são as principais tecnologias que movem o homem e que promovem o desenvolvimento social, cultural e econômico do mundo. Sem elas, tecnologias outras nem poderiam ter sido pensadas, posto que as linguagens concretizam a racionalidade exclusiva aos humanos. Sabemos que, na grande rede, as linguagens convergem de um modo fluido, viabilizando interações interpessoais individuais (um a um) e coletivas (todos para todos). Como se dá essa convergência de linguagens nos hipertextos ancorados nos servidores de Internet? Como os 1,9 bilhões de usuários da rede no mundo têm utilizado as linguagens para se comunicar? Haveria um modo característico de organizar as linguagens nas telas e dispositivos digitais? Em outras palavras, haveria uma Retórica Digital? O objetivo central deste trabalho é apontar elementos linguísticos e semióticos que permitam postular a emergência de uma retórica própria constituída consuetudinariamente pelos usuários da web que enviam e recebem inúmeras mensagens pelas redes sociais. Palavras-chave: Retórica digital - Redes Sociais - Hipertexto. Abstract: Languages are the major technologies that move man and promote the social, cultural and economic world. Without them, other technologies could not have been thought, because languages embody rationality which is an exclusive feature of human beings. In the World Wide Web, languages converge in a fluid way and allow individual interpersonal (one to one) and collective (all for all) interactions. How does this convergence of languages happen in the hypertexts anchored on Internet servers? How do 1.9 billion Internet users have used languages to communicate? Would there be a singular way of organizing languages on the screens and digital devices? In other words, would there be a Digital Rhetoric? The aim of this paper is to point out linguistic and semiotic elements, which may allow postulating the emergence of a rhetoric made by Web users who send and receive innumerous messages through social networks. Key-words: Digital Rhetoric - Social Network - Hypertext.

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Professor Titular em Linguística do Departamento de Letras da UFPE. Coordenador do III Simpósio Hipertexto e Tecnologias na Educação (02 e 03/12/2010).

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Introdução A quantidade de pessoas que passou a utilizar as recém-inventadas tecnologias tem incontestavelmente aumentado no Brasil e no mundo. Isso porque a ampliação das formas de comunicação nas relações pessoais e profissionais trazidas pelos dispositivos tecnológicos como telefones celulares, computadores, automóveis, aviões ultravelozes, trens “bala” entre outros, tem seduzido mais e mais indivíduos a utilizar tais dispositivos com mais frequência e a adotá-los definitivamente em seu modus vivendi. Para acompanhar esse aumento inexorável do uso de tecnologias no mundo, a ONU tem realizado pesquisas, desde 1998, cuja abrangência inclui o acesso à telefonia fixa e móvel, à TV e à Internet manuseadas a partir das residências dos próprios usuários. Nesta pesquisa não se contabilizam os acessos ao computador quando feitos a partir dos ambientes de trabalho, de laboratórios de instituições de ensino, de telecentros ou de lan-houses. Quadro 1: Dados sobre uso de tecnologias de informação e comunicação

Fonte – UTI Telecomunicação Mundial/ Base de dados de indicadores de TIC

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De acordo com o Quadro 1 acima, a base de dados dos indicadores de tecnologia de informação e comunicação da União Internacional de Tecnologia (UTI) aponta um crescimento notável principalmente nos equipamentos para os quais a tecnologia digital é imprescindível como o aparelho de telefone celular e o computador conectado à Internet. Em 1998, ano em que a pesquisa foi aplicada pela primeira vez, apenas 4% das pessoas do mundo usavam a grande rede. Esse número pulou para quase 26% em 2009. Um crescimento aproximado de 22% em pouco mais de 11 anos de realização da pesquisa, que incluiu apenas 159 dos 192 países filiados à Organização das Nações Unidas. Quadro 2: Percentual de usuários de TV e PC acessados em residências

Fonte – UTI Telecomunicação Mundial/ Base de dados de indicadores de TIC

Cruzando os dados dos dois Quadros 1 e 2, observa-se que os percentuais de crescimento, quando transformados em número de usuários reais de tais tecnologias, chega-se ao quantitativo de 1,9 bilhões de pessoas que já

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incorporaram a Internet em suas atividades diárias. Também são expressivos os dados relativos à adesão à telefonia móvel celular nos países em que a pesquisa foi aplicada. Outra constatação curiosa refere-se ao percentual de 67% da população mundial que possui pelos menos uma linha de telefone celular. Isto corresponde a um número estimado de mais de 4 bilhões de pessoas se comunicando via telefonia móvel. Em outras palavras, 3/4 dos habitantes do planeta Terra se servem do conforto e praticidade da comunicação por meio da telefone portátil. O Quadro 2 também mostra que são quase 5 bilhões os indivíduos que assistem a TV na comodidade de suas casas. Essa adesão a novos equipamentos de comunicação pelos sujeitos contemporâneos lhes confere, sem dúvida, acessibilidade a uma grande quantidade de informação e a possibilidade de usufruir de todas as vantagens da ampliação dos processos de comunicação viabilizados por tais equipamentos. Todavia, para usufruir dos benefícios de tantos dados à disposição e de inúmeras formas de interação a distância com outros sujeitos, graças aos aparelhos digitais, é necessário que seja produzido um volume enorme de linguagens, de toda sorte e natureza. Entre tais linguagens avolumadas e veiculadas nas mais diferentes formas de mídia, está a linguagem verbal. Ao lado da dela, outros modos de linguagem como a visual e a sonora concorrem dividindo o mesmo espaço perceptual de acesso aos significantes (Xavier, 2009). Em face à avalanche de números e mistura de linguagens que a convergência tecnológica propicia, surge uma intrigante questão: haveria um modo próprio de organizar as linguagens nas telas e nos dispositivos digitais? Em outras palavras, está surgindo uma Retórica Digital? O objetivo central deste trabalho é esboçar a existência de indícios linguísticos e semióticos que autorizem a postular a emergência de uma retórica digital constituída consuetudinariamente pelos usuários da web. Talvez seja o surgimento dessa retórica própria que explique como e por que as pessoas se

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entendem quando se comunicam multissemioticamente na web, especialmente, pelas redes sociais.

1. As Linguagens são tecnologias-chave para o incremento da humanidade Toda tecnologia é um conhecimento criado, desenvolvido e aplicado para resolver os problemas de limitações físicas e intelectivas do homem. Ela se realiza por meio de produtos, equipamentos e instrumentos complexos que promovem aumento na velocidade de ação dos sujeitos que a utilizam e oferece ganhos de produtividade e qualidade na realização de certas atividades e confecção de produtos. Dizendo de outra maneira, a tecnologia potencializa ações e abstrações dos sujeitos garantindo mais rapidez, eficiência e abrangência no espaço e no tempo em que seus beneficiários se encontram real e/ou virtualmente. Sem dúvida são as tecnologias que movem o homem e que promovem o desenvolvimento social, cultural e econômico do mundo. A conquista da civilização pela espécie humana tem passado por diversos estágios que mostram um acentuado desenvolvimento de sua capacidade intelectual. Os historiadores são praticamente unânimes em registrar os diferentes momentos deste desenvolvimento. O homem já foi identificado como Australopithecus, Homo Habilis, Pithecanthropus Erectus, Javantropo (Homem de Java), Homo Neanderthalensis (Homem de Heidelberg), Homem de Cro-Magno e Homo Sapiens. Neste último estágio, mostrou-se competente na aquisição de habilidades para falar e escrever. Sua capacidade racional de integrar a episteme e à techné explica a grande diferença que há entre ele e os animais irracionais. Essa evolução do homem pode ser atribuída à linguagem, enquanto tecnologia matriz. Sua invenção veio satisfazer às necessidades de planejamento intelectual, de comunicação interpessoal, além de contemplar o desejo de

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organização intrapessoal dos sentimentos íntimos que povoam a mente humana. Em outras palavras, a linguagem é a criação tecnológica que viabiliza a invenção e permite a execução de todas as outras tecnologias, haja vista que sem ela é impossível pensar inventivamente artefatos e muito menos montá-los, pois palavras encapsulam conceitos, matéria-prima essencial para pôr o raciocínio em funcionamento. A linguagem teve e tem, portanto, um papel determinante para eclosão da evolução tecnológica pelo qual passou, passa e passará a humanidade. Trata-se de uma disposição da natureza humana para se comunicar com outros humanos por diferentes signos formatados de variadas maneiras como fonemas, grafemas, gestos, imagens, ou seja, tudo que possa ser semiotizado para executar a necessidade de expressão. Cabe a linguagem a responsabilidade de coordenar o processamento dos dados acessados pela percepção ativada e transmitida pela rede neural (audição, visão, tato, gustação e olfato). Ela orienta o tratamento cognitivo que tais dados receberão seja do raciocínio, seja da memória, seja da imaginação. Em uma palavra, a linguagem gerencia a racionalidade, condição essencial à evolução tecnológica da humanidade.

2. Da Retórica Clássica à Nova Retórica Por ser a linguagem, ela mesma, uma tecnologia fundamental para a administração dos rumos dos sujeitos no mundo, ela renova-se e reconfigura-se constantemente, logo precisa ser reaprendida de tempos em tempos. A fertilidade e a imaginação do homem fazem-no efetuar modificações nos usos linguísticos, inclusive inserindo novas técnicas na arte de comunicar e novos equipamentos de ampliação e aperfeiçoamento do processamento da interação com os outros. Na esteira das modificações na linguagem e na comunicação constatadas pela história da civilização, está a proposta da utilização da Retórica nos contextos

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socioculturais em que há necessidade explícita da produção de discursos convincentes. Aristóteles (384-322 a.C), que escreveu A Arte Retórica (1978), é um dos primeiros a sistematizar as regras da comunicação eficaz. Partindo do princípio de que não existe democracia sem persuasão e persuasão sem retórica, ele observou, descreveu e exemplificou como poderia um homem do seu tempo falar persuadindo sua audiência. Para ele, todo discurso tem uma lógica argumentativa que o conduz e que pode funcionar para convencer sujeitos. Em três livros, Aristóteles discorreu sobre a melhor maneira de falar retoricamente. Em linhas gerais, o livro I foi dedicado à descrição do Ethos do orador, isto é, tratou da importância da construção de uma imagem positiva deste ao expor seu discurso diante da audiência, posto que mostrar um caráter apreciável é fundamental para tornar a mensagem convincente. No livro II, o filósofo focalizou o Pathos, ou seja, a busca do orador para atingir as emoções ainda adormecidas na audiência e assim persuadi-la a aderir sua tese. Já no livro III, Aristóteles destacou o Logos, a estrutura do discurso em si, a coluna vertebral da retórica permeada por diversas figuras de linguagem e de construção no interior dos enunciados. A Retórica Clássica, segundo Aristóteles, dependeria do encadeamento harmonioso entre esses três componentes (Ethos, Pathos e Logos) que formavam o discurso oral público. Sobre o Logos, ele defendeu sua elaboração dividida em quatro momentos interligados entre si, que são: Exórdio – momento em que o orador introduz sua fala e chama a atenção da audiência para manter-se atenta ao que será exposto. O anúncio do tema por meio de um título sugestivo, metafórico ou engraçado, uma frase de efeito, um constatação seriam boas maneiras de fazer engatilhar o discurso e assim atrair a curiosidade e o interesse do público até o final da preleção; Narração – é também conhecida como “exposição”, trata-se da sequência do discurso no qual o orador desenvolve sua tese, apresentando os argumentos que a fundamentam e ilustra-os com exemplos e casos da vida cotidiana da audiência; Provas – são despertares da emoção da audiência,

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movimento próprio do jogo retórico-argumentativo verdadeiro ou verossímil. As provas são necessárias ao discurso, pois, uma vez mostradas, elas produzirão o efeito de irrefutabilidade da tese do orador, levando, consequentemente, a audiência à adesão pelo suave convencimento; Peroração – é o último momento do discurso no qual deve o orador recapitular os argumentos principais e acordar as paixões na audiência. Ele deve ainda acentuar ou atenuar as consequências da tese defendida no discurso e fazê-la reverberar na mente do ouvinte. A presença de todas essas partes do discurso, quando bem articuladas, garantiria da retórica do orador. Todavia, Aristóteles lembra que elas podem ser adaptadas a cada auditório, já que, mudando o contexto filosófico em que se encontra uma determinada doutrina a ser anunciada, deve de igual modo o orador afinar seu discurso, bem como suas respectivas partes. Tal adaptação tem como objetivo mostrar que a função da retórica seria analisar tecnicamente as questões do cotidiano e construir a defesa de uma posição e jamais ameaçar a inteligência e a lógica dos fatos. Por ser um instrumento de raciocínio, a retórica não teria compromisso imediato com uma ética específica. No entanto, o filósofo de Estagira postulava que, ao realizá-la, deveria o orador considerar os fatores de ordem social, posto que ela não deveria ser utilizada para enganar a audiência, antes deveria esclarecer aspectos de uma questão importante para a saúde social da coletividade e preparar as pessoas para o exercício da cidadania na polis. Na arte da evocação imaginária, assim denominada por Aristóteles, a persuasão é resultado de um trabalho organizado, cuidadoso e delicado do orador com seu discurso a fim de fazer sua tese parecer verdadeira a sua audiência. Os recursos expressivos da linguagem se encarregariam de envernizar e enfeitar o texto, gerando eficácia em seu propósito de “enfeitiçamento” da audiência. Em sua concepção clássica, a Retórica fez parte do Trivium ao lado da Gramática e da Lógica. Foi considerada uma das sete artes liberais bastante estudadas nas universidades no período da Idade Média. Estudava-se também

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durante este período o Quadrivium que era composto pela Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. Foi por todas essas razões que a retórica teria se tornado uma estratégia comunicativa relevante para influenciar o pensamento, o sentimento e a ação das pessoais nas sociedades que vivem sob um regime democrático de governo. O polonês radicado na Bélgica, Chaïm Perelman, lançou, em 1958, em coautoria com Lucïe Olbrechts-Tyteca, uma importante obra intitulada Tratado de Argumentação. A Nova Retórica. Nela Perelman expõe suas reflexões acadêmicas sobre retórica e argumentação. O Tratado é considerado um dos livros mais importantes sobre a retórica ao lado de A Arte Retórica de Aristóteles. Seus autores objetivaram resgatar a perspectiva retórica do pensador grego e puseram os estudos dessa arte novamente em relevo. Um terceiro objetivo dos autores como a publicação deste livro seria romper com a razão cartesiana que teria reinado durante três séculos. Eles afirmam que: A publicação de um tratado consagrado à argumentação e sua vinculação a uma velha tradição, a da retórica e da dialética gregas, constituem uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos três últimos séculos. [...] A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa à certeza do cálculo. Ora, a concepção claramente expressa por Descartes, na primeira parte do Discurso do método, era a de considerar “quase como falso tudo quanto era apenas verossímil”. (1996, p. 1)

Como a citação busca explicitar, o Tratado se contrapôs ao fundamento epistemológico racionalista. Este fundamento filosófico fora altamente prestigiado e corroborado pela lógica e pela matemática, método de investigação defendidos por filósofos da linguagem, particularmente Frege, Russel e Wittgenstein. Ao racionalismo cartesiano se atribui a chave para a explicação de todos os fenômenos

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relativos às ciências matemáticas e naturais. No comentário sobre a questão, Perelman concorda com o argumento de que toda adesão se torna mais fácil quando se recorrem às provas e aos cálculos fornecidos por tais ciências. Contudo, “quando tais provas são discutidas por uma das partes, quando não há acordo sobre seu alcance ou sua interpretação, sobre seu valor e sobre sua relação com os problemas debatidos deve-se recorrer à argumentação.” (1996, p. 8) Perelman acentua que há questões morais, sociais, políticas, religiosas, filosóficas que não podem ser explicados ou resolvidos pela lógica-matemática. O que se deve fazer em situações como essas? Devem os homens se entregar às forças irracionais, aos seus instintos e à violência por não encontrar uma resposta razoável? Devem desprezar as técnicas de raciocínio tão comuns em processos de argumentação? O autor do Tratado afirma que, na ausência de uma resposta plausível da lógica-matemática, não se deve ignorar a existência de tais situações. Propõe, então, que se busque uma saída negociada, encontre-se um acordo entre as mentes inteligentes lançando mão de variados argumentos, fazendo valer o raciocínio retórico. Fica claro que o projeto teórico de Perelman era investigar qual seria a lógica dos julgamentos de valor quando é necessário decidir sobre situações cuja explicação a lógica-matemática não pode fornecer. O Tratado enfatiza mais a argumentatividade dialética e menos o formato eloquente que um discurso deva conter para impressionar a audiência. Destaca o aspecto verossímil próprio do raciocínio dialético e valoriza menos as proposições necessárias que têm a ver com a demonstração analítica, ambos os raciocínios descritos por Aristóteles n´Arte Retórica. Levando em conta que a teoria da argumentação objetiva sempre uma ação eficaz como resultado final, sendo essa razão por que o orador deveria caprichar ao formular seu discurso, Perelman explica que seu Tratado só versaria sobre recursos

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discursivos a fim de obter a adesão dos espíritos: “apenas a técnica que utiliza a linguagem para persuadir e para convencer será examinada...” (1996, p. 8). Em toda a obra, percebe-se um esforço do filósofo do direito para reavivar a importância desta arte cujo estudo e valorização teriam sido desprezados por muito tempo, só retomados durante o Renascimento, mas logo obscurecidas pelo cartesianismo. Nesta proporção, a tendência da retórica seria cair no esquecimento pari passu ao fortalecimento do racionalismo, já que a filosofia racionalista ganhou o impulso da lógica e da matemática, como já dito aqui. Inspirando-se nos lógicos, cujos bons resultados são evidentes e inegáveis, Perelman sugere que os pesquisadores racionalistas deveriam aceitar a teoria da argumentação como dispositivo de complementação às suas investigações. O que haveria de novo na Nova Retórica? Em que o Tratado distinguir-se-ia da Arte Retórica? A resposta à segunda pergunta refere-se diretamente ao interesse de que ambas as obras demonstram pelo estudo da mesma arte. Este seria, então, o principal ponto de convergência entre elas, já que em muitos aspectos ambas se assemelham. Para ilustrar, os autores do Tratado assumem que há dois elementos centrais para o exercício da arte retórica. São eles: a ideia de que um discurso se dirige sempre a uma audiência específica e o fato de que esta audiência precisa aderir às propostas apresentadas, constituindo-se este o objetivo principal de todo o arsenal de estratégias empregado pelo orador em sua preleção. Isso fica claro no trecho a seguir: ... essa ideia de adesão e de espíritos aos quais se dirige um discurso é essencial em todas as teorias antigas da retórica. Nossa aproximação desta última visa a enfatizar o fato de que é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve. Ter uma audiência e fazê-la acatar uma certa visão de mundo. (op. cit. 6)

Quanto à primeira questão, Perelman ressalta que o Tratado abarcaria um conjunto de aspectos mais abrangentes em relação aos abordados pela retórica antiga. Uma primeira evidência de conflito de interesse entre a Nova e a Antiga

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Retórica estaria no fato de que esta tomava como objeto de estudo a “arte de falar em público de modo persuasivo”, que se referia especificamente: “... ao uso da linguagem falada, do discurso, perante uma multidão reunida na praça pública com o intuito de obter a adesão desta a uma tese que se lhe apresentava. Vê-se, assim, que a meta da arte oratória – a adesão dos espíritos apresentada – é igual à de qualquer argumentação...”.

A Nova Retórica tem como foco a análise da estrutura da argumentação em textos escritos e não os discursos orais grandiloquentes. A justificativa para a opção pela modalidade escrita é a importância que ela adquiriu na sociedade moderna. A ênfase nos textos escritos dos mais variados gêneros e tamanhos, afirma Perelman, produz resultados bem mais amplos se comparados aos resultados da retórica antiga limitada aos discursos oralizados, perecíveis, realizados durante poucos instantes sem impactos mais duradouros na história social, política e cultural de uma dada comunidade. Uma tentativa de se aproximar dos lógicos revela outra diferença de objetivo entre as duas retóricas. Este não poderia ter sido propósito da Retórica Clássica porque a filosofia cartesiana ainda não existia naquele tempo. Sua preocupação central era mesmo com a formação de discípulos que praticassem bem a arte retórica que lhes era ensinada. Também os novos retóricos se caracterizam por focalizar o discurso em apenas um interlocutor, em lugar de visar uma grande quantidade deles tal como na retórica dos antigos. Essa mudança de foco e endereçamento do discurso depende de uma teoria geral da argumentação que é exatamente o escopo do estudo da nova proposta retórica. Ao elaborar seu discurso escrito, o orador é condicionado consciente ou inconscientemente pelo leitor a quem se dirige. Isso implica na organização sequencial e tática dos argumentos a serem apresentados para que eles bem atuem a fim de que surtem o efeito esperado, segundo destacou Perelman.

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O Tratado da Nova Retórica tinha como pretensão desvelar as estruturas e esquemas argumentativos manuseados pelos produtores de textos sem o recurso a provas ou a experimentos materiais inerentes à lógica-matemática que, no caso, dispensaria qualquer jogo de argumento. Confessa Perelman sua descrença na eficácia dos métodos de laboratórios para determinar o valor das argumentações presentes nas Ciências Humanas de um modo geral, no Direito ou na Filosofia em particular. Por essa razão, investiu mais de 600 páginas no estudo e na exposição dos processos sutis que levam o raciocínio humano à persuasão, ao convencimento sem o uso físico da força. Nas considerações finais, Perelman reafirma a natureza social da linguagem e suas funções como “instrumento de comunicação e ação sobre outrem.” Ressalta ainda a necessidade de a linguagem estar inserida num contexto real, sendo esta sua condição fundamental de funcionamento semântico, pois diz que: “Os termos utilizados, seu sentido, sua definição, só são compreendidos no contexto fornecido pelos hábitos, pelos modos de pensar, pelos métodos, pelas circunstâncias exteriores e pelas tradições conhecidas dos usuários. [...] A adesão a certos usos linguísticos é normalmente a expressão de tomadas de posição, explícitas ou implícitas, que não são nem o reflexo de uma realidade objetiva nem a manifestação de uma arbitrariedade individual. A linguagem faz parte das tradições de uma comunidade e, como elas, só se modifica de um modo revolucionário em caso de inadaptação radical a uma nova situação: senão sua transformação é lenta e sensível” (op. cit p. 580).

A ênfase da utilização da linguagem em contexto, conforme a citação acima, indica que os autores do Tratado apresentam uma coerência entre a concepção de linguagem que defendem e seu projeto teórico. Este postulava a argumentação dialética como ferramenta capaz de estabelecer princípios para se chegar a acordos entre os homens quando a prova ou o cálculo não cabiam à situação. Aderir a determinados usos linguísticos representaria uma decisão tomada quase sempre conscientemente pelo sujeito. Dessa forma, ele poderia manifestar sua intenção de ser identificado como membro de uma comunidade. Conceber a linguagem como

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parte das tradições de uma comunidade é advogar a íntima relação que aquela mantém com esta, em cuja modificação em uma implica indiscutivelmente mudança na outra. Salvo prova em contrário, a retórica é um jogo de estratégias verbais e não verbais aplicáveis a todas as situações em que haja interação entre sujeitos com a mediação da linguagem. De modo consciente ou não, os sujeitos, quando se encontram e se comunicam, contagiam-se, em alguma medida, uns aos outros. Assim, podemos afirmar que a retórica constitui o uso da língua(em) em quaisquer gêneros textuais e digitais ancorados nos mais diferentes suportes sejam novos ou antigos.

3. Retórica digital, comunidade retórica e redes sociais Como foi dito no início, a hipótese básica deste trabalho é defender a chegada da retórica digital como um efeito da intensa variação no uso da língua combinada a linguagens outras em comunicação mediada por computador. Esta normalmente acontece entre sujeitos que, se não participam efetivamente de uma Comunidade Virtual (doravante CV) organizada, pelos menos compartilha com outros algumas identidades socioculturais, o que justificaria a frequente troca de mensagens virtuais a distância entre eles. Sendo assim, é importante estabelecer o conceito de comunidade retórica em ambiente virtual. Miller (2009) é uma das pesquisadoras que trabalha bem este conceito. A partir da noção de ‘reprodução’ pertencente à teoria da estruturação de Guiddens (1984, p. 51-52), ela enxerga uma equivalência entre este conceito e o que os retóricos clássicos denominavam de ‘recorrência’. Por esta via interpretativa, a autora afirma que: A recorrência (termo da retórica) é inferida pela nossa compreensão de situações como sendo, de algum modo, ‘comparáveis’, ‘similares’ ou ’análogas’ a outras situações”. [...] O que a noção de reprodução acrescenta é a ação dos participantes; atores sociais criam recorrência em

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suas ações ao reproduzir os aspectos estruturais das instituições, ao usar estruturas disponíveis como meio para sua ação e, desse modo, produzir essas estruturas de novo como resultados virtuais, disponíveis para futura memória, interpretação e uso. (Grifos da autora)

Seja ‘reprodução’ ou ‘recorrência’, percebe-se que as ações linguísticas dos envolvidos em uma comunidade se repetem e, por meio desta repetição de atos (principalmente Atos de Fala), é possível haver reconhecimento e identificação que se intensificam ao ponto de se transformar em aceitação, interinfluência e adesão ao discurso e à prática do outro. Esses movimentos vão formar a memória da comunidade, componente importante por funcionar como estoque das informações de base às quais os sujeitos sempre recorrem e as reproduzem. No entender de Mille, fundamental também é a relação de apoio estrutural e interacional mútuo que deve haver entre a ação contida na comunicação individual e o sistema social em que o agente, membro de uma comunidade, está inserido. A autora observa que os sujeitos em geral precisam reproduzir noções e encapsular sentidos que foram padronizados por outros sujeitos individuais ou institucionais. A sociedade e sua cultura têm a responsabilidade de oferecer as estruturas linguístico-discursivas com as quais os sujeitos consigam se comunicar. A autora acredita que, na vida dos grupos humanos, é necessário que seus membros ajustem-se constantemente uns às linhas dos outros, pois, “ao agir conjuntamente, temos sensações, concepções, imagens, ideias e atitudes comuns”, supõe a pesquisadora, parafraseando as palavras de Blumer (1979, apud op. cit. 53). Em uma palavra, a reciprocidade garantiria a coesão do grupo. Em relação à comunidade retórica, Miller pergunta o que a caracterizaria. Em resposta à própria questão, ela afirmar que não seria o comportamento linguístico comum usado entre seus membros o único traço de distinção, mas suas ações, o que fazem com e pela linguagem, quando discursam e dialogam e como se dá sua estrutura relacional. Segundo a autora, comunidade retórica é uma entidade

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virtual2, uma espécie de projeção discursiva, um construto retórico. Ampliando esta definição, ela diz que: É a comunidade tal que é invocada, representada, pressuposta ou desenvolvida no discurso retórico. É constituída por atribuições de ações retóricas articuladas características, gêneros de interação, modos de realização, que inclui o de reproduzir a si mesma. [...] as comunidades retóricas “existem” nas memórias humanas e nas suas instanciações específicas em palavras: não são inventadas do zero, mas persistem como aspectos estruturadores de todas as formas de ação socioretórica. (p. 55)

Mesmo utilizando o termo ‘virtual’, Miller não se referia, na passagem acima, especificamente às comunidades virtuais. Todavia, é válido reter desta citação a noção abstrata de que os sujeitos em geral têm de comunidade, ainda que não consigam explicá-la em detalhes. A projeção discursiva feita pelo sujeito decide exatamente qual será o gênero de interação mais adequado àquele grupo de pessoas ao qual dirige suas ações verbais. É exatamente isso que parece acontecer aos membros das comunidades virtuais da web; eles sabem o que querem e como dizer o que precisa ser dito para se mostrarem pertencentes, pertinentes e influentes retoricamente sobre os demais membros das CV de que participam. Para Miller, o modus operandi das comunidades retóricas realiza-se parcialmente através de um gênero textual, que é o lugar de execução das ações sociais articuladas, reproduzidas pelos sujeitos a elas vinculados. Mas, as comunidades retóricas também operam “de um modo mais geral, como um lugar em que forças centrífugas e centrípetas precisam encontrar-se (para usar os termos bakhtinianos)” (p. 56). A pesquisadora salienta com esta citação o caráter paradoxal do funcionamento das comunidades que vivem oscilando entre o micro e o macro, o singular e o recorrente como forma de atender as individualidades dos sujeitos que nelas se esforçam para fazer parte da homogeneidade constitutiva 2

É bem verdade que Miller não se referia particularmente à existência de comunidades virtuais na Internet, mas às comunidades entre pessoas de um modo geral, ratificando que toda comunidade possui um forte componente retórico (no sentido aristotélico) que lhe dá sustentação. Contudo, muito do que ela disse a esse respeito ainda se aplica aos dias atuais, bem como é observável nas comunidades virtuais da web.

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destas entidades coletivas. A retórica em sua essência requer ambos, acordo e desacordo, compreensões partilhadas e novidades, contestações, identificação e divisão. Só assim os discursos retóricos conseguem se instaurar e influenciar os sujeitos que se alternam nos papeis de oradores e ouvintes, todos integrantes de uma mesma comunidade retórica. Relacionando as reflexões de Miller e, especialmente, as características das comunidades retóricas apontadas pela pesquisadora americana à proposta deste trabalho, pode-se afirmar que esses mesmos elementos permeiam as comunidades virtuais organizadas em redes sociais que povoam a Internet. Há membros cujas intervenções não são vistas circular por longos períodos entre os debates da comunidade,

mas

eles

permanecem

lendo

as

mensagens,

acompanhando

atentamente as intervenções dos outros, reagindo-lhes veladamente. Por vezes, não interferem efetivamente para evitar o conflito direto que pode gerar a entropia da CV, estratégia para evitar o predomínio das forças centrífugas que podem pôr em risco a existência da comunidade em qualquer ambiente de ancoragem. Miller

acredita

que

certas

forças

centrípetas

são

disponibilizadas

retoricamente para impedir que uma dada comunidade se desfaça. A primeira destas forças seria o gênero textual. Ele teria o poder de estruturar intenções de ações dos sujeitos e partilhá-las com a comunidade. A segunda força disponibilizada para conter a dissolução de uma comunidade seria a metáfora ou as figuras de linguagem de uma forma geral. Sua dimensão alegórica ofereceria aos sujeitos modos ricos de, a partir da diferença, criar similaridades. A terceira e última força centrípeta citada pela autora que promoveria a coesão da comunidade é a narração. Ela teria a capacidade de construir e unificar semanticamente comunidades

retóricas

por

evocar

a

sensação

de

pertencimento

pelo

compartilhamento de acontecimentos passados como base para estimular ações futuras e em razão do compromisso dos sujeitos com a inteligibilidade de tais ações

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diante de si e dos outros. De acordo com a pesquisadora americana, os sujeitos pertencentes a comunidades concretas (e virtuais) precisam contar/relatar para eles mesmos e para outros histórias que viveram e quais foram seus papeis nelas. Gênero, metáfora e narrativa são conceitos relevantes na gênese das comunidades retóricas e parecem bem aplicáveis às comunidades virtuais on-line. Também

são

valiosos

alguns

instrumentos

teóricos

para

observação

do

comportamento linguístico dos usuários de aparelhos digitais propostos pela Retórica Clássica e pela Nova Retórica tais: as noções de reprodução, estratégias retóricas, ethos, pathos, logos, auditório, premissas e conclusões, argumentos diversos etc.. Todos esses elementos aparecem sobrepostos a outros elementos semióticos para compor o que se chama aqui de Retórica Digital. Toda retórica é constituída de linguagens e essas se modificam e se adaptam às inovações tecnológicas dos homens, e por isso ela também tende a se renovar. Diante de diferentes hábitos e comportamentos comunicativos diversos, a retórica também sofre modificações e emerge no espaço real e virtual de comunicação com outra roupagem. Importa, então, conhecer quais foram as mudanças efetivas que ocorreram nas retóricas clássica e nova que formataram a retórica hoje em vigor permeada por tecnologias. Para isso interessa mapear os recursos retóricos presentes nas comunicações mediadas por computador on e off-line. Apontar a presença de tais elementos semióticos superpostos às mensagens produzidas nos diversos gêneros digitais é uma estratégia de abordagem deste trabalho.

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4. Breve análise de um ‘torpedo’: sinais de uma Retórica Digital Figura 1: Mensagem produzida em aparelho celular

Fonte: BBC

À guisa de exemplificação do que se poderia tomar como traços de uma retórica digital emergente, será feita a análise de uma mensagem produzida na telinha de um aparelho de telefone celular. No gênero digital SMS, comumente conhecido como ‘torpedo”, são encontradas abreviações de palavras, supressões de sílabas, transgressões propositais à norma ortográfica e trocas intencionais de certas letras por outras pelo sujeito produtor. Esses traços parecem dar início a um processo de reconfiguração do sistema de notação escrita de diversas línguas nas quais a Geração Y3 tem introduzido quando produz mensagens em alguns dos gêneros digitais.

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A classificação das gerações feita pela Sociologia indica que, antes da Geração Y, houve a Geração Tradicional, BabyBoomer e a Geração X. A denominada Geração Tradicional teria prevalecido até 1945. Ela se caracterizou por ser prática e hierarquizada. A chamada Geração Baby-boomers, que vigorou entre os anos de 1946 a 1964, recebeu uma herança maldita: as sequelas econômicas e psicológicas da Segunda Guerra Mundial. Por essa razão, lutou pela paz, enfatizou os valores pessoais e a qualidade da educação dos filhos. É formada por pessoas focadas que agem preferencialmente com base no consenso de opinião. Já a Geração X, que compreende aqueles que nasceram entre os anos de 1965 a 1977, é preocupada com a melhoria na qualidade de vida, gosta de tecnologias, é super protetora e cética sob muitos aspectos.

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Há vantagens visíveis da adoção desses procedimentos retóricos incorporados pela nova geração em suas práticas linguageiras. São elas: mais velocidade na produção “escrita” da mensagem em formato hipertextual; inserção do fator espontaneidade na interação por escrito; e, principalmente, grande aumento na atenção do interlocutor que o desafio da leitura dos enunciados encapsulados em semioses diversas desperta nele. Tudo isso poderá estimular a compreensão dos atos de fala do sujeito locutor e influenciar o saber e o agir do sujeito interlocutor, objetivos de todo empreendimento retórico-linguageiro. Como se vê, a mensagem no display do celular apresenta-se simples, compacta e objetiva. Observa-se que o leitor mediamente alfabetizado consegue decifrar a mensagem e inferir a intenção contida na maior parte dos atos de fala produzidos pelo locutor, apesar das peculiaridades no modo de grafar certos vocábulos. Tome-se, por exemplo, a palavra ‘tudo’, cujas vogais estão subtraídas restando apenas dois grafemas /t/ e /d/ = ‘td’ como elementos significantes. Neste caso, há uma economia notável no tempo de produção do enunciado. Todavia, a mesma justificativa não serve para o caso da modificação sofrida pela palavra ‘como’ que foi escrita com ‘k’ e não com ‘c’, sua grafia oficial. Note-se ainda que a mesma quantidade de letras (quatro) foi preservada. O efeito sonoro de oclusiva velar surda é o mesmo. Talvez a intenção de quem realiza essa substituição seja brincar com a similaridade auditiva existente entre elas. Em relação à compreensibilidade de ambas as palavras em tela, praticamente não há dificuldade para reconhecer o cumprimento inicial comum que introduz a interação entre pessoas que se conhecem. Os vocálbulos, embora modificados, realizam com clareza os atos de fala pretendidos pelo locutor. Aplicando o princípio cooperativo proposto por Grice (LEVINSON, 2007), encontrase uma expressão formulaica frequente no quotidiano principalmente em interações orais. Em geral, essa expressão formulaica aparece semanticamente

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repetida (‘td bem?’ = Está tudo bem com você? seguida imediatamente de ‘komo vc tá’ = Como é que você tem passado?). De acordo com Teixeira (1998), a cognição humana requer frações de segundos para processar a inteligibilidade de uma informação contida em uma dada sequência de letras que representa uma palavra inteira. O reconhecimento da significação cresce à medida que a mesma sequência de caracteres vai reaparecendo em outras oportunidades de contato linguístico. Certos grafemas organizados de uma determinada forma e reiterados algumas vezes tendem a se engramar no cérebro em forma de rede. A iteração constante torna os grafemas familiares facilitando o trabalho da memória sempre que tais grafemas reaparecerem outras vezes. A plasticidade cerebral permite ao ser humano aprender e apreender uma grande variedade de informação e a reagir rapidamente a qualquer comando de ação desde que a informação esteja já bem engramada e articulada na sua memória (ISQUIERDO, 2000). No momento em que percebe recursos fônicos e gráficos condensados em um signo, a mente aciona conexões sinápticas que procuram de modo quase automático formar o sentido a partir do que foi percebido. Como afirma Smith (2003), o processamento da leitura de um texto não ocorre sílaba por sílaba, mas por blocos de palavras e sintagmas inteiros. Nunca se lê uma palavra isoladamente das outras ao seu redor e muito menos se ignora seu contexto extralinguístico. Em outras palavras, os blocos de sílabas vão sendo processados cognitivamente até serem encaixados “logicamente” dentro de uma moldura racional de significação considerando o quadro cotextual e, sobretudo, conectando aos dados contextuais disponíveis na memória e na capacidade imaginativa do sujeito. No momento em que surge alguma incompatibilidade lógica com prejuízo à semântica do enunciado, a mente retorna imediatamente às porções anteriores do enunciado até encontrar uma significação razoável. Logo, não há motivos para

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grandes preocupações em relação às ‘modificações’ realizadas pela Geração Y na forma híbrida de produzir mensagens em determinadas gêneros digitais, como podem pensar alguns educadores. Trata-se apenas de uma utilização mais flexível dos grafemas do léxico da língua em uma dada situação comunicativa e não de uma vontade deliberada de que a tal palavra seja definitivamente modificada e dicionarizada. Portanto, as variações morfológicas com impactos fonético-fonológicos não tornam as palavras modificadas ilegíveis, nem os atos de fala incompreensíveis; elas podem tornar o processamento cognitivo mais lento, já que o cérebro ficará à procura da inteligibilidade possível à partir das novas formas das palavras, se elas ainda não estiverem bem engramadas na mente do interlocutor. Verificam-se ainda variações similares na expressão clivada ‘é que’ e os verbos ‘ficar’ conjugados no pretérito perfeito (‘fiquei’) e no presente (‘fique’), ambos no modo indicativo. Eles foram substituídos por variações sonoramente parecidas como: ‘ek’, ‘fikei’ e ‘fike’. A vantagem do menor esforço para conseguir também uma economia de espaço é mínima para essas três palavras, mas variações assim são feitas mais pelo prazer de transgredir, de usar uma escrita diferente do que por qualquer outro motivo mais “lucrativo” semiótica ou discursivamente. Na mensagem contida no gênero SMS, há também ocorrências de uso diferenciado do grafema ‘x’. No caso em tela, ele substitui o grafema ‘s’ em palavras como: tais = ‘taix’, espero = ‘xpero’ e beijos = ‘beijox’. Ele também assumiu o lugar do ‘ç’ no verbo ‘almoxamos’ = almoçamos. Possivelmente a motivação para essa substituição não teria sido o desejo de fazer economia na produção do enunciado. Essa mudança pode ter sido motivada pela grande aproximação fonética entre as duas fricativas, sendo uma ‘fricativa alveolar’ (‘s’) e a outra uma ‘fricativa velar’ (‘x’), cuja distinção é extremamente sutil em sua realização fonológica, já que ambas são surdas. Há formas diferentes de produzilas, conforme mudam os falantes, sua região, sua idade, seu nível de escolaridade

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e sua classe social. A modificação proposital pelo usuário de SMS pode ser uma maneira de revelar suas ideias políticas e ideológicas que acredita serem importantes ao interlocutor sabê-las. Informar características pessoais é uma estratégia retórica eficaz para seduzir os interlocutores, ao identificar-se com eles, e assim gozar de sua confiança, concordância e anuência às ideias e às posições assumidas na mensagem. Tais mudanças morfológicas apresentam-se como recursos retóricos que buscam garantir a espontaneidade da fala, pela velocidade com a qual a mensagem pode ser produzida, e revelar o ethos do locutor. Há ainda a utilização das consoantes ‘ctg’ para significar a palavra “contigo” e das letras ‘Ccc’ que representam o enunciado que significa “Conte comigo, certo?”. Essas modificações morfológicas que compactam palavra e expressões buscam atingir os mesmos propósitos apontados antes: a espontaneidade e velocidade de produção de linguagem que revelam um locutor descontraído, desinibido, desembaraçado, ethos desejável para a conquista da atenção de um auditório. Cabe salientar a presença da palavra “tipo” que também aparece abrindo um dos períodos do torpedo. Trata-se de uma palavra frequentemente usada na fala de membros da Geração Y e encontrada até em discursos informais de pessoas de gerações anteriores. Em um estudo acerca da utilização exagerada da expressão “tipo assim” por adolescentes brasileiros, Bittencourt (1999) apresenta, entre outros fatos, que se trata de uma expressão que está sofrendo um processo de “deslexicalização” e assumindo traços gramaticais e pragmáticos novos. “Tipo assim” tem aparecido tanto no começo, quanto no meio como no final do enunciado e desempenhado funções discursivas diversas. No torpedo em análise, ‘tipo’ está sem ‘assim’ e aparece no início do período, sem conexão explícita com um termo ou ideia expressa anteriormente nem posteriormente. Apesar do distanciamento semântico em relação a algum item lexical-fonte, infere-se que ela

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assuma alguma significação. Na mensagem em análise, ‘tipo’ parece funcionar como uma espécie de “resumo” da intenção total do locutor ao escrever o torpedo, qual seja, manifestar apoio, solidariedade e atenção a fim de preservar uma boa relação com o interlocutor. No torpedo também se pôde observar a categoria narrativa para comunidade retórica, como sugeriu Miller (2009). A mensagem seria apenas um pequeno fragmento de um grande conjunto de enunciados não ditos que exigiam de muitos conhecimentos partilhados entre os interlocutores. O locutor que a enviou sabia de algo que aconteceu ao interlocutor por isso empregou o adjetivo ‘preocupado’. Certamente não havia espaço suficiente nem tão pouco necessidade de explicitar o que havia ocorrido com eles, pois provavelmente ambos tinham em mente os mesmos acontecimentos que haviam dado origem àquele SMS. As histórias deles se encontravam num breve torpedo. A Geração Y tem se comunicado frequentemente por meio esse modo de produção de linguagem, aqui denominado de retórica digital, formatada em gêneros digitais diversos tais como: torpedo (Short Message Service), scrap (recados em sites de relacionamento), chat, programas de mensagens instantâneas (MSN, Gtalk etc.) e alguns e-mails. Se na Retórica Clássica valorizava-se a eloquência oral do locutor e na Nova Retórica enfatizava-se a modalidade escrita da língua, na Retórica Digital mesclamse ambas as modalidades, procura-se extrair o melhor de cada uma delas, isto é, busca-se conseguir a espontaneidade da fala com a compacidade da escrita. Aristóteles ensinava que o discurso deveria ser endereçado a uma grande audiência; Perelman pensou em uma retórica do texto escrito que seria dirigida a um leitor específico; o locutor da Geração Net remete-se, normalmente, a uma comunidade virtual de interlocutores cuja retórica ganha uma dimensão global quando a mensagem é disponibilizada nas redes sociais diversas podendo ser lida

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por pessoas de qualquer lugar do planeta, mesmo sem participar da comunidade virtual específica para a qual a mensagem teria sido inicialmente enviada. Na Geração Net predomina o desejo de compartilhar conteúdos com mais rapidez e assim obter respostas com mais velocidade do seu interlocutor com o qual mantém relações de identidade. Para esses sujeitos a língua está a serviço da comunicação descontraída, porém objetiva. É bem verdade que, no caso do exemplo do torpedo analisado, as modificações na composição da mensagem poderiam causar estranhamento aos não familiarizados com este gênero. Mas, como se pôde constatar, com um pouco de perspicácia, é possível pescar os atos de fala inseridos nos microtextos abreviados, encurtados com várias “transgressões” ao sistema de notação alfabética da Língua Portuguesa.

Considerações finais Entender um pouco mais sobre o funcionamento da natureza humana a partir da compreensão dos modos de realização das linguagens em diferentes momentos da história e nos mais diversos ambientes em que se travaram e se travam embates comunicativos é o propósito da maioria das pesquisas com o viés da Ciência da Linguagem. O presente trabalho também tem esse objetivo. Os períodos da história da civilização possuem suas características antropológicas, culturais, políticas, filosóficas, econômicas e sociotécnicas próprias. O século XXI é marcado pelos efeitos de uma grande transformação tecnológica que reverbera em vários setores da vida, inclusive no modo de os sujeitos manusearem a linguagem agora marcadamente apoiada pelas novas tecnologias. Por conseguinte, a geração da vez, denominada Geração Y, tem feito um uso específico da linguagem a fim de atender aos seus propósitos comunicativos. Ela tem lançado mão de estratégias retóricas adequadas às características dos gêneros digitais disponíveis. Por isso, é comum aglutinarem

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semioses e promoverem modificações na grafia de palavras sem prejuízo à inteligibilidade do conteúdo. As variações na morfologia de vocábulos e o hibidrismo de linguagens se apresentam como fortes indícios da emergência consuetudinária de uma retórica digital. Este fenômeno linguageiro é consuetudinário porque não há um código oficial, uma gramática específica que normatize os modos de produção de mensagens nos novos gêneros digitais veiculados na Internet. Uma vez membros de alguma comunidade virtual, os sujeitos socializam-se em redes e interagem com interlocutores a distância, muitas vezes, sem ter tido antes um só contato presencial. Mesmo sem qualquer conhecimento dos mecanismos constitutivos da Retórica Clássica ou da Nova Retórica, a Geração Y está criando ao seu modo uma retórica outra com forte presença dos equipamentos digitais. O curioso é que essa retórica digital, que parece surgir no seio das práticas discursivas de tal geração, não é exclusiva dos usuários da Língua Portuguesa. Ela parece efetuar-se também em outras línguas vivas. Estudos realizados por Crystal (2001, 2004) para o inglês britânico, Thurlow & Brown (2003) para o inglês norteamericano, Climent et alii (2007) para o espanhol, Anis (2007) para o francês, Palfreyman & Khalil (2007) para o árabe, Tseliga (2007) para o grego, Lee (2007) para o japonês, Su (2007) para o chinês, mostraram que esse fenômeno vem acontecendo em várias outras línguas, cujos inovadores também são da nova geração. A adaptabilidade do ser humano, a resiliência da linguagem e a chegada de novas ferramentas de informação e comunicação oferecem as condições necessárias e suficientes para a criação de um modo novo de comunicar persuasivamente auditórios agora espraiados pelo globo.

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